Coluna do Edu | Nunca ignore o fluido de freio: aprendi isso com um Corvette a 203 km/h
Um Corvette sambado, fluido vencido e um susto a 200 km/h: os bastidores de um teste que virou lição
César Tizo - julho 23, 2025
Eduardo Pincigher é jornalista formado pela PUC-SP e atua no setor automotivo desde 1989, com passagens em diversas publicações e montadoras. Hoje trabalha como assessor de imprensa por intermédio de sua agência de comunicação e reúne em sua coluna semanal algumas passagens curiosas e análises sobre o segmento
Tenho duas histórias peculiares para dividir nesta semana, ambas dos anos 90, quando eu fazia testes de carros. Uma é muito boa, engraçada, daquelas que você se vinga de um cara desagradável e, ainda por cima, apronta uma estripulia bem divertida ao volante. A outra é péssima. Envolve um acidente. A despeito de não ter vítima, poderia ter sido trágico. E trágico pra mim, que era quem estava guiando a 200 km/h quando ocorreu.
Qual você quer primeiro? A boa ou a má?
Pois vamos de má. E já te dou um spoiler: o conteúdo didático é o mais importante.
A má: você sabe o que é higroscopicidade?
Guarde essa palavra.
Em 1993, a revista Quatro Rodas pautou um teste do Chevrolet Corvette LT1 (300 cv de potência e 46 kgfm de torque). Mas a GM nunca importou oficialmente esse modelo. O desafio na Redação transformou-se em competição: quem achasse um modelo de importação independente seria o autor da reportagem e teria a primazia de testá-lo na pista. Achei um. Pertencia a uma locadora.
Fui retirar o carro numa sexta-feira. Logo reparei no hodômetro: 56 mil milhas rodadas (quase 90 mil km). Comecei a observar o interior e notei que seu estado geral era compatível: volante descascado, manchas nos bancos, puxadores gastos de portas. O painel era até opaco, típico de quem vivia tomando sol.
(O quê? Você deixa seu carro no… sol? Eu não deixo! Jamais! Se minha casa não tem cobertura na garagem, ora, eu troco de casa. E o que eu faço quando vou à praia, por exemplo?? Ué, uso o carro da minha esposa.)
Logo pensei: “Que Corvette sambada! Nunca testei um carro tão malhado quanto esse. Mas é um Corvette, Edu, para de frescura”. Parei de frescura e fui embora. Acordei no sábado de manhã e peguei a estrada sentido Limeira (SP), onde ficava a pista de testes. À época, ela pertencia à Freios Varga. Hoje é da ZF. É composta por um circuito semelhante aos ovais norte-americanos: duas retas paralelas de 1.800 metros de extensão e curvas bem fechadas em formato de “U” que unem as retas. Essas curvas têm a faixa externa com inclinação, em relevo, o que favorece que se trafegue em velocidades mais altas.
Uma vez, eu estava testando um Monza Classic MPFI e deu fading no final da reta. Fading é quando ocorre superaquecimento de discos e pastilhas, o que diminui drasticamente a eficiência do sistema pela perda de atrito. O pedal fica duro e você que se vire. Consegui pendurar no câmbio (5ª pra 4ª, 4ª pra 3ª), um certo frio na espinha… e entrei na curva a 115 km/h, já lambendo o guard rail que delimitava o final do asfalto no perímetro externo. Com carros “normais”, você contornava essa faixa a 100 km/h sem muitos problemas.
Chegando na pista, montei o equipamento de medições e iniciei os testes. Fiz consumo, aceleração lateral, nível de ruído, retomada de velocidade e frenagens. Note: as frenagens foram o penúltimo teste. E parti para o último: aceleração. (Sequência infeliz, Edu.)
As provas de aceleração eram deflagradas no início da reta. Eu zerava o computador, engrenava o Drive, pé no porão e largava. E acelerava até completar 1.000 metros. O maior interesse era medir o 0 a 100 km/h, mas aproveitávamos para cronometrar o tempo que cada carro levava para percorrer 1 km. Vencida essa distância, você continuava de pé embaixo e ia aliviar uns 200 metros antes do final da reta. Era só frear e fazer a curva a 120 km/h, velocidade bem adequada para um Corvette por ali.
Como sempre há o efeito do vento de frente ou de cauda, você não podia medir a aceleração em um sentido só. A normatização da revista previa que se fizesse três arrancadas em cada reta. Você desprezava o melhor e o pior tempo e calculava a média aritmética dos quatro resultantes para publicar o número final.
O que o gênio do tio Edu fazia? Media o carro na reta A (depois de ter feito os testes de frenagens), contornava a curva e, para não perder tempo, parava no início da reta B e repetia a operação. Era sábado. Eu queria terminar logo o teste e retornar pra São Paulo… de Corvette, né?
Eu era um piloto de testes hábil. Responsável. E dotado de técnica pra fazer aquele trabalho. Tanto que nunca mais nem ralei uma roda de carro de teste. E já havia me livrado de uns três ou quatro fadings no final da reta com outros carros. Mas eu tinha 23 anos. Era inexperiente. Deveria ter desconfiado que seria temerário aplicar consecutivamente várias freadas fortes sem resfriar o sistema de freios em um carro tão sambado e sem qualquer sinal de manutenção bem-feita.
Como o fluido de freio é HIGROSCÓPICO, que é a capacidade de alguns materiais de absorver água – o do seu carro também é –, o do Corvette estava velho e contaminado. Em condições severas, o fluido perdia eficiência devido à alta temperatura. Na quinta ou sexta freada, o líquido ferveu e enviou “borbulhas de amor” aos cilindros de roda.
Eu vinha a 203,4 km/h pela reta. Ao pisar no freio, a sensação foi de ter acionado o pedal de embreagem – as pinças receberam vapor d’agua, não fluido. O pedal foi lá no carpete. O carro era automático, ou seja, nem houve a chance de conter a velocidade com ajuda do câmbio. Essa ajuda seria pouco relevante, mas melhor do que nada… E o “nada” foi só a desaceleração natural em 200 ou 300 metros, de 203 km/h para uns 170 km/h. Entrei na curva e conscientemente golpeei o volante para provocar a traseira (tipo drifting) e bater de lado. Deu certo. Estampei bem de lateral e o guard rail conteve a carroceria. Fui esfregando até que parasse. Nem disparou air bag.
Para minha sorte, pelo menos nisso, o fotógrafo da revista lá estava e chegou logo em seguida. Pedi a ele que clicasse o pedal de freio ainda encostado no carpete, atestando que o carro não estava em condições ideais pra teste. Como a revista fazia seguro, a locadora não saiu no prejuízo e o carro foi consertado.
Mas eu sei que minha inexperiência colaborou. EU SEI. Poderia ter feito a medição de 1.000 metros na reta e dar uma volta inteira, a 70 ou 80 km/h, para resfriar o sistema antes de iniciar nova medição. Não sei sinceramente se isso teria evitado o pancão. Quem sabe?
A regra é clara, doutor: NUNCA espere pra trocar o fluido de freio do seu carro. O que aconteceu comigo pode te tornar vítima numa descida de serra em que os freios sejam repetidamente exigidos.
Chevrolet Corvette conversível 1993
A boa: o maior burnout que já fiz na vida
Para quem curte “pi-lo-tar”, os carros dos anos 90 eram insuperáveis. Os primeiros esportivos que chegaram ao Brasil tinham ao redor de 300 cv, muitos eram tração traseira e nenhum deles vinha com controle de tração. Essa receita era beeeeeem divertida.
Na estreia da pista de Viracopos para medir velocidade máxima na Quatro Rodas, em 1992, alguém teve a ideia de fazer um tira-teima entre alguns dos modelos mais velozes que tínhamos testado na pista da Varga, que tinha uma extensão de reta insuficiente para apurar todo o rendimento dos novos importados. Os carros selecionados foram Mitsubishi Eclipse GS Turbo, Mitsubishi 3000GT VR4, Nissan 300ZX Turbo, BMW M5, Mercedes-Benz SL500 e Honda NSX. Venceu o NSX, inclusive, com 258 km/h.
Quando eu estava indo pra Viracopos, guiando o 3000GT pela Rodovia dos Bandeirantes (uns 130 km/h de velocímetro), o Nissan passa por mim, a mais de 200 km/h, pilotado por um gerente da KTM (nome do importador Nissan à época). Ao chegar ao aeroporto, o cidadão começa a desprezar o 3000GT. “Não dá pra comparar esse ‘caminhão de feira’ com o 300ZX. Isso aí não anda nada. Quase o atropelei na estrada”. Sabe cara chato? Folgado? E, ainda por cima, não para de falar?
Em dado momento, o sujeito passa a se queixar do preço dos pneus do 300ZX e do cuidado que esperava que tivéssemos no teste. Sou daqueles caras que “quando sou bom… sou ótimo. Quando sou ruim… sou melhor ainda”. Convido um jornalista da revista pra participar de uma “puxada”. No Nissan, claro. Dou a partida e esterço maldosamente o volante em 180 graus. O 300ZX tinha motor V6 biturbo de 300 cv, câmbio manual, tração traseira e nenhum controle eletrônico.
Subo a rotação a 5.000 rpm e arranco de uma vez com o volante apontado pra direita: a traseira atravessa, pé trancado, contra esterço, segunda marcha, as turbinas pressurizando, conta-giros no regime de corte, fumaceira insana no retrovisor, pneus girando em falso… Sim, os mesmos pneus que custavam uma fortuna.
(Pausa para um sorriso sarcástico).
Deixei uns 30-40 metros de marca de borracha e algumas centenas de dólares de lembrança no asfalto rugoso da pista do aeroporto, além, claro, e com muito prazer, de uma densa nuvem de fumaça na cara do infeliz.
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