Coluna do Edu | “A Ferrari escolhe cliente”. Você acredita nisso mesmo?
Mitos e exageros cercam a venda de carros esportivos no Brasil, mas a ideia de que montadoras vetam clientes não passa de lenda urbana
César Tizo - setembro 7, 2025
Eduardo Pincigher é jornalista formado pela PUC-SP e atua desde 1989, com experiência em diversas publicações e também em montadoras. Atualmente, é assessor de imprensa à frente de sua própria agência de comunicação e, em sua coluna semanal, compartilha análises e passagens curiosas sobre o jornalismo automotivo
Uma coisa é fazer Marketing com o intuito de criar uma aura de exclusividade, produzindo a impressão ao mercado que a oferta é sempre menor que a procura. Isso faz parte do jogo, principalmente em marcas de luxo. O consumidor abastado será tão capaz de pagar mais caro em um produto quanto menor for a sua oferta. Até aqui, OK. A prática é tão comum que até marcas generalistas ingressaram nessa toada, caso de Honda (Civic Type R), Toyota (GR Corolla) e Volkswagen, por ocasião da chegada do Golf GTI Mk 8,5.
Outra coisa muito diferente é afirmar que “eu veto cliente”, como alguns artigos na imprensa têm sugerido que a própria Volks faria. Não, eu não acredito nisso. E não acredito porque essa prática seria ilegal e discriminatória, conforme prevê o Código de Defesa do Consumidor. Ninguém pode impedir a venda de um produto a um cliente por julgar que ele não é compatível (oi?) – por qualquer motivo torpe que você imaginar – com a imagem do produto. Não pode e acabou.
O mais incrível é que essa papagaiada vem estampada pela grande mídia, que tem assassinado o bom Jornalismo em nome dos cliques. Quantas vezes você já leu que a “Ferrari escolhe clientes”? “Favelado não pode ter Ferrari…”? “A Ferrari mandou o funkeiro fulano de tal devolver a Purosangue”? Neste último caso, inclusive, existe uma reportagem que menciona que o cliente teria devolvido a Purosangue “a pedido da Ferrari”, mas comprou uma 488 Spider no lugar. Ué, o rapaz não tem “padrão” pra andar de SUV, mas o Cabrio pode?
Resolvi cumprir meu papel de repórter, algo raro por aí nesses tempos bicudos. “Alô, aqui é o Edu Pincigher, tudo bem? Me fala uma coisa: existe algo de verdade em afirmar que a Ferrari veta clientes?” Adivinhe a resposta? “Óbvio que não, Edu.” Ninguém nunca se deu ao trabalho de te-le-fo-nar pra Ferrari pra perguntar se era verdade!!
Ferrari F80
O que pode acontecer, e isso seria o mais próximo possível do “escolher clientes”: toda vez que um modelo exclusivo vai ser lançado e chegará ao país com um número limitado de unidades, a marca pode contatar os clientes mais fiéis e tradicionais e oferecê-lo primeiramente a eles. Isso é direito dela. Versões restritas e numeradas, como o 911 S/T e o 911 Dakar, por exemplo, tiveram um volume inferior a uma dúzia de unidades. Já chegaram 100% vendidas. A Porsche escolheu os clientes? Sim, escolheu. Só que se eles tivessem recusado, ela venderia os remanescentes a consumidores comuns (funkeiros, pagodeiros, influencers, empresários, ou qualquer cidadão brasileiro)? Venderia.
É absolutamente mentirosa a afirmação de que qualquer cidadão brasileiro que entrar numa concessionária Ferrari (ou Porsche, ou Lamborghini, ou Toyota, ou Volkswagen ou o raio que os parta…) e anunciar interesse no carro que está no showroom à pronta entrega, poderá ser impedido de realizar a compra. Isso seria crime. Não existe. Em nenhuma delas.
A lenda urbana e a lógica da cebola
Tenho que usar o princípio da cebola para chegar ao ponto crucial do porquê essa afirmação virou lenda urbana e parte da imprensa embarcou nessa furada. Vamos por camadas.
Toda vez que um carro esportivo se envolve em um acidente, isso gera muito mais mídia que automóveis comuns. Há quem tenha dado manchetes questionando por que os carros da Porsche, por exemplo, estão se metendo tanto em colisões. Gente do céu… Eles se envolvem MENOS e por razões óbvias: são carros mais seguros e que rodam menos, pois ninguém faz uso desses veículos como meios diários de locomoção. Uma afirmação como “estão se envolvendo tanto…” não resiste a qualquer análise estatística, mas a turma do clickbait vai lá e põe no título da reportagem.
Esses acidentes tornam-se midiáticos, mas argumentar que eles “batem” mais do que os outros é estupidez. Morrem 95 pessoas por dia no trânsito brasileiro (dados de 2023). Esse infeliz contingente está perdendo a vida a bordo de tudo quanto é carro, novo ou velho, popular ou esportivo, nacional ou importado, além de motos e caminhões. Mas só acidente com 911 ganha manchete.
De acordo com essa lógica maluca, alguns jornalistas incorrem a outro erro crasso, atribuindo esse suposto número de acidentes “à venda indiscriminada que a Porsche está fazendo para funkeiros e pagodeiros, isto é, um público despreparado a conduzir esses superesportivos” (sic). Como se a atividade profissional ou o nível sociocultural do cidadão ditassem perfil para cometer mais ou menos crimes no trânsito. Quero explicar aqui com a clareza que me é peculiar: não é a profissão que determina a aptidão para conduzir na rua um carro com 400 cv. É o bom senso. E isso independe de qualquer classificação de gênero, atividade profissional, classe social ou nível educacional.
O que a montadora pode fazer
A Porsche, por exemplo, oferece o Track Experience, um programa de formação aos seus clientes composto por treinamento de condução, que cria a oportunidade de ampliar conhecimentos e práticas de direção segura, realizado em ambientes apropriados e controlados, como autódromos. Além disso, ela organiza inúmeras oportunidades de track days e, caso o cliente deseje se profissionalizar, existe a possibilidade de tirar a habilitação da CBA e ingressar na Porsche Cup.
Não é de responsabilidade da marca, portanto, se o influenciador Gato Preto, Cão Branco ou Passarinho Azul passar em um farol vermelho às 6h20 da manhã e acertar em cheio um HB20!! Ou nós vamos culpar a Honda por cada acidente com motoboy nas grandes cidades (lembrando que ela também tem curso de formação de motociclistas)?
É a vez da VW
O assunto voltou à baila nos últimos dias, quando a Volkswagen deu novas pistas de como será a chegada da nova geração do Golf GTI. Não participei de entrevistas com os executivos da marca, então vou vender exatamente o que comprei: li várias matérias que diziam que a marca iria escolher os compradores e que a recompra, caso um dia algum deles quisesse revender o carro, teria de ser feita para a própria Volkswagen. Isso foi o que eu li. Pode ser que seja tudo balela. A ver.
Chequei com a VW. E ela respondeu que só informaria as condições comerciais após o dia 6 de setembro.
Há quem tenha publicado que o carro poderia ser vendido a meio milhão de reais. Acho um exagero. Mas vá lá. Ela pode fazer um trabalho em cima da base de clientes de gerações anteriores de Golf GTI, ou Jetta GLi, e tentar emplacar a venda desse novo Golf direcionada a eles. O importante a se reafirmar, caso sobre um saldo de veículos e eles forem parar na rede autorizada, que eles serão vendidos no varejo como qualquer carro, por tudo o que já mencionei.
Fala-se até que a Volkswagen proporia um termo ao comprador do Golf GTI em que ele, ao revendê-lo no futuro, teria que priorizar a montadora. Até aqui, tudo bem. Dá para amarrar contratualmente, já que papel aceita tudo. Mas como ficaria a definição de valores? Vou insistir no fato de tudo isso ser hipotético, tá?
Explico melhor: o Toyota GR Corolla é vendido a R$ 417 mil (versão Core) ou R$ 462 mil (Circuit). Na prática, ele possui inúmeros anúncios de unidades zero km ano/modelo 2024 à venda – sem contar os seminovos por R$ 100 mil a menos. Isso sugere afirmar, polidamente, que o GR não está sendo exatamente um grande sucesso. Mas para explicar a questão da recompra, vamos supor que o Golf GTI chegue por R$ 420 mil e, sim, vire um enorme sucesso de vendas. “Vamos apenas supor”, com muitas aspas e ressalvas.
Como vantagem em relação à Toyota, a Volks possui uma base com milhares de clientes que já provaram algum modelo esportivo da marca, inclusive o próprio Golf GTI de gerações anteriores. A base da Toyota… era zero, o que talvez explique a dificuldade vista hoje.
Eu, o Edu, que já tive Golf e devo estar lá na lista de candidatos potenciais, fico interessado pelo novo hatch e acabo comprando esse novo GTI na próxima semana – como se eu tivesse R$ 400 e poucos mil pra dar num… Golf (ou em qualquer outro carro…rs). Daqui um ano e meio, vejo que todo o lote foi vendido e ainda há demanda reprimida de compradores. Ué, cismo de vender o meu. Só que eu terei rodado apenas 2.000 km com o carro, por exemplo. Os outros modelos à venda nos marketplaces serão unidades com 10.000 ou 15.000 km. Meu carro valerá mais, não? Claro que sim. Pois eu chamo a Volks e digo que quero vendê-lo por R$ 500 mil. Mas a montadora decide que só paga R$ 350 mil. Está criado o impasse.
Que contrato será esse que supostamente a Volks me obrigará a assinar (a própria montadora não confirmou nada até agora, vale repetir ene vezes), onde ela rege qual será o valor futuro do meu seminovo? Duvido que ela cometeria essa antipatia. Ela manda legitimamente no preço do carro zero. No usado, meu amigo, quem manda sou eu. E “bora” comprar uma Ferrari, que, acredite, eles vendem para qualquer um. Até pra colunista… rs 😉